A Biblioteca da Vila, conto de Miguel Beirão da Veiga


Um conto de um amigo, Miguel Beirão da Veiga:
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A BIBLIOTECA DA VILA
(Conto em tempo de covid)



A biblioteca, situada num edifício no centro da vila, a antiga escola da Câmara, ou mais precisamente na ala feminina da escola, pois a ala masculina, de igual dimensão e simetricamente disposta, é agora o centro de dia onde os idosos passam algumas horas, dormitando, mas também conversando com os amigos. Muitos deles recordam ainda os tempos em que corriam para aquele mesmo edifício, para aprender a ler e a contar com uma professora que, por vezes, tinha de atender a ambos os lados da escola. Boas recordações desses tempos, melhores as recordações do que o tempo por lá passado, principalmente os que tiveram como professora a D. Regina, mestra ríspida que não permitia qualquer brincadeira dentro da sala de aulas. Alguns ainda se lembram dos tabefes ou puxões de orelhas, que na altura doíam mais no orgulho que na pele, embora agora tudo isso dê azo mais a riso e chacota que a dores ou mágoas. Boazinha era a professora Clotilde, mais nova e que auxiliava a D. Regina, mas essa é recordada principalmente pelas mulheres, pois ajudava no ensino sobretudo da secção feminina da escola.

Mas voltemos à biblioteca. Nos anos 80 do século XX, estava o edifício da antiga escola fechado há anos e já com alguns traços de ruína, quando a Junta de Freguesia teve autorização da Câmara para lá instalar o centro de dia em parte do edifício. O município, então, aproveitou as obras para, na outra metade, instalar uma biblioteca, que seria a primeira que a vila ia ter com alguma dignidade. Na verdade, na sala de jogos do edifício dos bombeiros, onde os homens se encontravam, havia uma estante de livros apelidada de biblioteca, livros esses que serviram de semente no novo espaço. A esses livros se juntaram muitos outros doados por pessoas, agora meros anónimos, ou então por editoras que quiseram deixar a sua marca em muitas das pequenas bibliotecas que nessa época iam aparecendo país fora.

A entrada na biblioteca é feita pela antiga porta do gineceu da escola, atravessando-se uma pequena sala, antigamente cheia de cabides onde as alunas deixavam os casacos, e agora com outros cabides e uma mesa de apoio. Nesta sala de entrada temos a porta da casa de banho e, à direita, agora sem porta, abre-se uma sala grande, fruto da junção de duas salas de aulas, vendo-se no centro uma única mesa comprida com várias cadeiras.
Numa das paredes maiores abrem-se duas janelas largas e por baixo delas há três mesas cada qual com o seu computador, uma inovação já do século XXI. Toda a parede oposta à das janelas é a parede rainha da biblioteca, repleta de estantes de livros, muitas delas ainda por preencher. Finalmente, no fundo da sala, sobre uma secretária com uma cadeira cómoda, “a secretária da Doutora”, encontra-se o ficheiro da biblioteca e, ao lado, fica a porta de uma pequena divisão conhecida por “sala das fotocópias”, onde ainda se adivinha pela antiga ombreira o sítio da porta que ligava as duas partes da escola.

A “Doutora”, assim conhecida, é a responsável pela biblioteca. Viúva dum antigo médico da vila, empenhou-se em manter e dinamizar a biblioteca ainda o marido era vivo.
Embora não esteja nestas funções desde a inauguração da biblioteca, lembra-se de quando aquele espaço era bem mais procurado pela população da vila. Havia animação, quer pelos mais novos, quer pelos adultos. Os mais novos, alunos da escola e do liceu, apareciam ciclicamente com professores para escolherem livros para ler. Muitos deles voltavam à biblioteca para entregar o livro, mas não saíam de mãos a abanar, pois levavam outro. Não raro, trocavam com os amigos as aventuras sem estas passarem pela biblioteca. Agora, que o próprio liceu tem biblioteca, e com os meios digitais de consulta, essa malta jovem deixou de lá aparecer. Quanto aos adultos nunca houve muitos que lá fossem buscar livros, é verdade, mas alguns habituaram-se a ir consultar a enciclopédia quando descobriram que nela vinha a resposta a todas as dúvidas que as discussões entre eles levantavam… a todas não responderia, mas a bastantes, e era um bom tira-teimas.

Outra actividade que em tempos levou os adultos à biblioteca foi a animação que o senhor Queirós e a mulher fizeram durante alguns períodos. Queirós, actor de profissão, vivia em Coimbra e era num teatro de lá que actuava, mas passava longos tempos numa casa da vila onde tinha nascido o seu avô paterno. Nessas ocasiões ele a sua mulher juntavam na biblioteca muitas pessoas a quem iam lendo um livro e com quem depois discutiam as histórias e as suas personagens. Por vezes, a sala ficava cheia de ouvintes e participantes durante a quinzena em que o livro era lido. Não raro, isso era um estímulo para muitos levarem para casa outro livro – tempos em que a biblioteca estava aberta de segunda a sexta, de manhã e de tarde e mesmo nas manhãs de sábado. Muito diferente é agora, que se passam tardes sem ninguém aparecer. Tardes, sim, pois, de manhã, já nem sequer está aberta, e mesmo assim não é raro estar a porta fechada e um papel com o “volto já” ou “estou aqui ao lado no centro de dia”. Alguns idosos da instituição vizinha passam por lá para ler o jornal diário e, fora isso, são mais usados os computadores que as estantes dos livros.

Que interesse teria para si, leitor, toda esta descrição, se não fosse, um dia, entrar lá um homem ainda novo que cumprimentou a guardiã dos livros em tom afectuoso:

– Boa tarde, doutora, está boa?
– Boa tarde. Sim, bem, obrigada – e ficou a olhar para o recém-chegado.
– Não me está a conhecer. Sou o filho do farmacêutico, do antigo…
– Ah, Augusto. Não o via há tanto tempo! Desculpe, está bom? O que o traz por cá?
–Bem, não vinha cá há muito tempo. Desde que o meu pai adoeceu, e vendeu a farmácia, e fomos embora, poucas vezes voltei à Quinta Nova. Vim só passar o fim-de-semana para abrir a casa e tirar-lhe o mofo.
– E a mãe está boa?
– Sim. Velhotita, mas está bem. Está num lar em Condeixa, não muito longe da casa onde vivo.
– E o que quer de mim e da biblioteca? O que procura? Em que posso ajudá-lo?
– Procuro um livro de poesia. Estava a ouvir telefonia a caminho de cá, e ouvi um poema de que gostei muito. Não é provável que o tenha, mas, quando parei o carro e vi que estava aberta, resolvi entrar para ver.
– Fez bem, pelo menos assim cumprimentámo-nos e falámos um pouco. Quanto ao
livro não sei. Qual é?
Sonetos perdidos, dum tal Fabião, João penso eu.
– Olha, que julgo que tenho – respondeu, orgulhosa, a doutora Enquanto iam conversando e pondo as notícias em dia, dirigiu-se ao arquivo para procurar a ficha do livro. Claro que podia ter ido directamente à prateleira da poesia e procurado o livro, mas quis fazer o processo seguindo todos os trâmites.
– Sim está com sorte. Temos sim – e foi andando para a estante na área da poesia.
Tirou o livro e entregou-o de imediato ao visitante. Este recebeu-o com um sorriso
e abriu-o de seguida. Mas…
– Este livro está com um defeito, a impressão está muito clara, dá a ideia de que se
está a apagar – e mostrou-o à doutora.
– Tem razão, mas quando o recebemos não estava assim, senão tínhamos visto.
Que porcaria de tintas que usam agora.
E tirou outro livro da estante para comparar. Para espanto dela, estava na mesma, com a tinta a esvanecer-se. Assustada com o sucedido, tirou um terceiro, mas esse estava bom, com letras bem visíveis.
– Não percebo o que se passa. Há livros que se estão a apagar. Se calhar é de um antitraça que usamos e que está a estragar os livros – disse, enquanto abria um outro livro.
E enquanto faziam considerações sobre o sucedido, puseram-se os dois a abrir livros e a escolher os que estavam a ficar brancos, que colocavam na mesa central, e os outros que voltavam a arrumar na respectiva estante. Num instante tiraram uma vintena de livros que arrumaram em duas pilhas na mesa.
– Vamos parar. Vou fechar a biblioteca e, para já, ninguém mais aqui entra, até se perceber o que se passa. Pode ser alguma coisa que faça mal às pessoas. E agora, à saída, lavamos bem as mãos – disse a doutora, decidida, mas ainda confusa com o sucedido.

Saíram os dois da biblioteca, depois das mãos bem lavadas, e ainda a chave da porta não tinha dado a segunda volta, já toda a vila sabia da ocorrência: “Os livros da biblioteca estão-se a apagar!” Foi o tema das conversas desses dias nos cafés e em cada casa da vila. Ponderou-se até se seria de encerrar o centro de dia, pois podia o edifício ter algo que afectasse as pessoas mais vulneráveis. Mas, pesando os prós e contras, decidiu-se mantê-lo aberto. Havia que fazer alguma coisa de concreto quanto à biblioteca. Para isso contactou-se da biblioteca municipal de Coimbra o seu director, o qual, ouvindo o problema, se disponibilizou a enviar alguém que fosse ver o que se passava e tentar ajudar na sua resolução.

E, na verdade, menos de uma semana depois estavam na vila uma bibliotecária e um técnico de conservação para ver se entendiam o que estava a acontecer. Ouviram a explicação da doutora já dentro do edifício, olharam para os livros doentes e, munidos de luvas, abriram outros que estavam ainda nas estantes. Brancos uns, normais outros.
Constataram que os livros mais usados, muitos deles de lombadas quebradas e páginas com os cantos dobrados, marca da leitura efectuada, estavam sem problemas e que muitos livros em bom estado aparente sofriam da misteriosa maleita. Não tinha a ver com a tinta ser recente ou antiga, pois num livro de há décadas, daqueles em que se tinha de abrir cada caderno com uma faca, estava quase ilegível e ninguém o tinha ainda sequer aberto.
– Estranho, nunca tal vi – disse o técnico.
– Não pode ser do produto que usamos para matar os insectos? – perguntou a doutora.
– Desse produto de conservação não deve ser, pois é o que usamos e até recomendamos e nunca tal nos aconteceu.
Entretanto a bibliotecária que tinha um dos livros doentes nas mãos, tentava lê-lo.
No início teve dificuldade em perceber as letras, mas, aos poucos, à medida que ia avançando na leitura dava a impressão que a fazia com mais facilidade. No fim da página já lia correntemente e sem dificuldade. Voltou mesmo atrás no texto e encontrou com facilidade a linha que queria. Afinal lá estava tudo, preto no branco.
– Olhem, estou a conseguir ler este livro. Um dos brancos. Tive dificuldade no início, mas depois tornou-se tão fácil como em qualquer livro.
A doutora e o técnico pegaram cada qual num livro da pilha dos estragados, abriram-nos e concentraram-se nas letras. Difícil de início, mas, aos poucos, à medida que iam entrando no texto do livro, decifravam-no cada vez com mais simplicidade até o lerem correntemente e sem custo. Entreolharam-se, sorriram os três e a doutora exclamou.
– Não entendo nada. Afinal, estão bons? O conteúdo está todo lá. O que se passa afinal?
– Nunca tal coisa vi, em todo o tempo em que tenho feito manutenção de livros.
– Eu, como bibliotecária, também estou espantada, mas estou a pensar numa hipótese.
– Diga por favor. Qual hipótese? – disseram os outros dois em uníssono.
– Tenho algum receio de verbalizar. Conheço e lido com livros há muito, por vezes digo que têm alma, mas também não quero cair no ridículo.
– Não tem de ter receio, – disse a doutora. – Estamos aqui só nós e o assunto é tão surpreendente que tudo, ou nada, pode ser ridículo.
– Então cá vai a minha ideia. – Fez uma pausa e continuou. – Quanto a mim, os livros estão numa espécie de depressão. Podemos não dar esse nome, mas estão magoados por ninguém jamais lhes pegar. Sentem-se papéis com letras, inúteis, aqui arrumados há anos sem que alguém lhes pegue, folheie e ria ou chore com eles.
Todos voltaram a entreolhar-se, e a doutora, com os olhos toldados, avançou:
– Pobres livros! Por isso os mais lidos estão em melhor estado. Mas que havemos de fazer? Será mesmo que todos os livros terão cura?
– Julgo que sim, têm de ser lidos… será necessário pedir ajuda às pessoas da vila para os levarem e lerem. Tem de os chamar cá e entregar a cada um, um livro que os possa
satisfazer, para que o livro se sinta lido com dignidade – concluiu a bibliotecária.

Continuaram os três a conversar e, na despedida, ficaram de voltar a falar-se, para a doutora contar o que se ia passando e receber apoio dos outros dois nesta missão de voltar a dar vida aos livros.
A vila sabia do que se passava com a biblioteca, a vila sabia que lá tinham estado pessoas para estudar o caso, a vila estava ávida por saber o que elas tinham dito, portanto não foi difícil à doutora juntar a população para lhe falar. E foi no adro da igreja, numa tarde de bom tempo que a doutora lhes disse:
– Todos querem saber o que se passou, vou dizer-vos, mas também vou precisar da vossa ajuda.
Calou-se um pouco e continuou.
– Os livros não estão estragados, apenas um pouco zangados e tristes.
Silêncio geral, alguns risos entre os assistentes. E continuou:
– Sim, estão tristes por ninguém os ler. Estão para lá arrumados, com fome de serem lidos. Precisamos que cada pessoa lá vá buscar um livro e o leia. Que entenda as suas personagens, que discuta com elas se não concordar. A biblioteca, os livros da biblioteca esperam por vocês para de novo reviverem e cada um de vós só pode ficar a ganhar por lê-lo.

Durante a semana seguinte as pessoas foram entrando de novo na biblioteca para levar o tal livro. Ajudados pela doutora levavam aquele que mais lhes podia agradar. Havia muito que na biblioteca não se assistia a tal movimento. Mesmo que fosse passageiro era bom de ver.
Um mês passado, num telefonema com a bibliotecária, a doutora narrava:
– Quero agradecer-vos mais uma vez a vossa vinda cá. Voltou tudo ao normal. Os livros estão de novo com as páginas visíveis. As pessoas, ao princípio, ajudaram muito ao vir buscar e ler os livros doentes, mas traziam uns e queriam logo levar outros. Muitas pessoas habituaram-se mesmo a vir ler para aqui, de tal modo que agora já abro a biblioteca todo o dia e já arranjei dois voluntários que me ajudam e me substituem quando necessário. 
Sabe, no início foram as pessoas que ajudaram os livros a renascer, mas agora já são os livros que ajudam as pessoas a viver.


Miguel Beirão da Veiga
Páscoa em tempo de “covid”, Abril de 2020



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