Nem toda a gente se dá bem por aqui [18]

A maioria dos meus vizinhos dá-se bem por aqui. Vamos conversando, trocando experiências e esperando ansiosamente pela alta hospitalar.
Para aqueles que vão estando mais desanimados, lá lhes vamos dando algum alento, contando histórias, algumas anedotas e partilhando as nossas vidas. E são os médicos, as enfermeiras e auxiliares que vão tentando explicar calmamente o que se está a passar, para que servem os tratamentos, e explicando a situação de cada doente, para que em cada momento se saiba o que está previsto acontecer.
Mas nem sempre é fácil. Há exames para fazer, há resultados que não batem certo. E o corpo humano não é bem um relógio em que cada uma das peças sabe exactamente o que tem de fazer. Às vezes, existem muitas interferências, e em especial nos mais idosos, os sintomas cruzam-se, e entram para aqui com um problema no coração mas já trazem atrás de si um manancial de doenças de difícil resolução.
Enfim quando se está nesta clausura durante muito tempo, sonha-se com a data da alta, para que tudo possa voltar à normalidade.

Disseram-me também que há doentes que quando o médico lhes diz que têm alta, dali a pouco começam logo a queixar-se de dores no peito, para ver se continuam internados no hospital. É que há por aí muito abandono familiar, maus tratos e muita solidão, que uma estada num hospital ajuda a esquecer.

Há quem não goste da comida, porque isto de ser sem sal, custa a habituar. Há quem não goste de sopa (com ou sem sal). Há quem não esteja habituado a este tipo de vida de clausura.
Há também quem goste de tudo, usando do optimismo, porque se tem de ser assim, não será daí que o gato vai às filhoses.

Há também aqueles doentes que protestam por tudo e por nada. Não percebem que viver aqui, numa pequena comunidade, em que as necessidades e urgências de tratamento, não se compadecem às vezes com as suas exigências individuais.

É com isto que todos vamos vivendo no dia-a-dia. E para mim, já passaram 21 dias. Já sou um veterano.

Comentários

Carla disse…
Hoje envio um poema para despertar o arco-íris que pode estar escondido, por detrás do horizonte dos que resistem mais a adaptar-se ao ambiente hospitalar, pois não deve ser nada fácil...

Receita para fazer o azul

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice
a.sáxeo disse…
21 dias de melhoras! Está quase!
Não tarda vais poder trincar o tal coelho com ervilhas, devidamente temperado.
Huuummmmm...
Um abraço

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